sábado, 6 de novembro de 2010

O custo da Justiça ao serviço dos incumpridores

Há iniciativas, que muitas vezes parecendo cheias de boas intenções, trazem escondido objectivos perniciosos.

Deparei-me recentemente com um exemplo, que me deixou pasmo.
Como sabem, sou engenheiro, pelo que o meu conhecimento do sistema legal/judicial é apenas superficial.

Bem, a situação: apenas recentemente me apercebi do que é um "tribunal arbitral", e o que isso significa, e quais as diferenças de um tribunal cível (comum).

Para aqueles que como eu eram ignorantes sobre este tema, concerteza já viram ser proposto em muitos contratos o "recurso à arbitragem", ou recurso ao "tribunal arbitral com recusa a qualquer outro". E provavelmente perante a pergunta que também eu fiz, sobre o que é isso, receberam a mesma resposta que eu: é uma alternativa ao sistema judicial comum, que permite resolver os casos mais rapidamente. Sendo assim, óptimo!

Pois em princípio é verdade, mas há um segundo aspecto que nunca ninguém me referiu, e que é o custo que estes tribunais implicam. Apenas recentemente me apercebi que um processo num tribunal arbitral, facilmente ultrapassa os 80.000 Euros!!! Sim, é isto mesmo! Quando num tribunal cível o custo do processo pode ficar por 10 ou 20 vezes menos. E aqui não estou a considerar os custos dos advogados!

Agora vamos olhar para esta particularidade do custo num contexto de franchising.

Vou dar um exemplo 100% fictício para exemplificar a situação. Imaginem a "D. Emília" que pretende ter o seu próprio negócio de costura e pequenos arranjos de roupa, e opta por um franchising na área. O investimento é de 40.000 Euros, dos quais a D. Emília tem 15.000, optando por financiar junto da banca os restantes 25.000. Na assinatura do contrato de franchising, tal como muitos franchisadores dizem, "temos que ter fé", e ela de boa fé assina o contrato que lhe foi apresentado, e dito não ser sujeito a negociações.

Perante a apresentação feita, por senhores com slides muito bem construidos, brochuras e planos de negócios com aspecto muito profissional, a D. Emília pensa para ela: pareceu-me tudo tão bem, foram tão simpáticos, e um advogado é tão caro... olha vou acreditar neles e assinar o contrato que me apresentaram.

Nesse contrato vem a seguinte particularidade: todos os diferendos relacionados com a interpretação do contrato ou com o papel das partes serão tratados em tribunal arbitral, excepto temas relacionados com cobranças dos valores devidos pelo franchisado ao franchisador, caso em que caberá ao franchisador a escolha do tribunal.

Bem, não sendo bem este o texto, pois estou a descrever uma situação 100% fictícia, o objectivo texto escrito no contrato era o seguinte: em todos os temas que possam ser de interesse do franchisado, recorrerá-se à arbitragem, e nos de interesse exclusivo do franchisador, poderá recorrer-se a um tribunal comum.

Claro que perante dezenas de páginas de clausulado e artigos, a D. Emília nem entendeu bem o impacto desta clausula, a qual também lhe foi expolicada resumidamente conforme já referi, sem qualquer alusão aos custos envolvidos.

Agora vejam esta situação: o franchisador logo desde início toma uma postura abusiva e ilegal perante a D. Emília, forçando sobrecustos de cerca de 500 Euros / mês, levando o negócio da D. Emília para um nível de rentabilidade mínima. Perante as reclamações da D. Emília de que isto não foi o acordado, o franchisador responde com ameaças e palavras duras, sustentadas numa interpretação tendenciosa sua do texto do contrato. Perante o desespero da situação, a D. Emília lá decide finalmente procurar um advogado para tentar resolver a questão via judicial.

Quando reune com o advogado este informaã de que para discutir esta questão num tribunal arbitral, poderá incorrer em custos de mais de 60.000 Euros.......

Ora se a D. Emília mal conseguiu 15.000 Euros para abrir a empresa, como é que algum dia ela conseguirá 60.000 para um processo judicial num tribunal arbitral???

E assim, a justiça torna-se um recurso da parte mais forte. O franchisador, como parte mais informada e mais capaz financeiramente, conseguiu que nenhum dos seus franchisados consiga algum dia colocar-lhe uma acção. Ele sabe que pode fazer o que bem entender, que nunca terá um caso em tribunal.

A legislação nacional e o nosso sistema de justiça, prestam desta forma um excelente serviço aos franchisadores incumpridores.

Esta era uma ideia que nunca me tinha passado pela cabeça, mas mais uma vez, aqui se confirma a má fé de muitos franchisadores em Portugal. E por isso, defendo que deveria haver rapidamente o desenvolvimento de legislação específica para o franchising em Portugal, por forma a que a parte mais fraca nestas relações (o franchisado) possa ser convenientemente defendido.

Portanto, se assinar um contrato de franquia em Portugal, esteja atento! E não assine nada sem ser convenientemente aconselhado por um bom advogado.

Termino com mais uma daquelas frases célebres que ouvi certo dia: qualquer burlão de sucesso é credível. Se não fosse, não conseguiría burlar ninguém! Por isso, se lhe apresentarem o negócio do século, só cheio de vantagens, mas com alguns pequenos pontos que lhe deixam dúvidas, mas que não são sujeitos a negociação, ou com contratos que não estão abertos a alterações de qualquer tipo, desconfie...

Pelo menos, neste ponto da "arbitragem", se leu este post, já não tem razão para cair na armadilha.

Senhores legisladores e responsáveis pelo sistema judicial em Portugal: com esta particularidade, estão a conseguir que dezenas de famílias percam tudo o que têm em esquemas de franchising que são verdadeiras burlas, crescendo a coberto deste e outros buracos que o enquadramento legal português permite. Por isso, muitos deles quando tentam internacionalizar-se para mercados menos ineficientes que o Português, não têm sucesso.

Para mais ideias, sugiro a leitura dos posts Condições de saída em contratos de franchising e Legislação Portuguesa quando o franchising corre mal.

Abraço!

3 comentários:

  1. Eu estou a passar por uma situação semelhante a esta que ficciona...e tenho conhecimento de varias situações que colocam franchisados em completo desespero por falta de recursos para avançarem para tribunal quando alguém lhes explica o que é um tribunal arbitral. O que fazer quando sabemos que temos razão e que agora não temos recursos para nos defendermos deste tipo de "parceiros"? Como pode o estado permitir que alguém deixe de ter acesso á justiça, pois é disso que se trata nestes casos, quando este é um direito básico de qq cidadão? Aguardo vossos comentários pois julgo podermos elucidar um grupo grande de pessoas que se viram envolvidos neste tipo de situações.

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  2. Infelizmente não é fácil encontrar soluções para estas situações. Daí que elas efectivamente são armadilhas às quais é fundamental estar atento. Pelo que nesta situação, talvez a melhor estratégia seja usar esta armadilha a favor do franchisado. O franchisador não entrará em tribunal, sobretudo face aos custos da arbitragem, por pequenas coisas. E se efectivamente a sua postura for abusiva, também não entrará pelas grandes coisas pois na certa saberá que perderia a causa. Por isso, há que levar a relação com o franchisador numa perspectiva de defesa da sustentabilidade do negócio do franchisado, ignorando os aspectos que na postura do franchisador violam a lei e o espírito do contrato de franchising. Sendo um mau franchisador, será apenas uma questão de tempo até que feche. Outro caminho, é conseguir a união da rede de franchisados para partilhar os custos de uma acção, e em conjunto litigar contra os abusos do franchisador. Na primeira opção, prolongará a vida da empresa através de uma melhor condição financeira, e na segunda, efectivamente encontrará uma solução definitiva. O ideal, é executar estas duas estratégias em simultâneo, pois de nada vale ir a tribunal, se a empresa falir antes de o processo chegar a julgamento.

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  3. A acrescer a tudo o que referi anteriormente, é fundamental logo desde cedo reunir evidências das ilegalidades e abusos cometidos pelo franchisador. Assim, mesmo num contrato recente, é fundamental que todos os aspectos sejam convenientemente documentados, ou em e-mail ou em carta. Quem é sério, não terá qualquer problema de passar tudo a escrito. Se do franchisador sentir resistência a escrever por e-mail o que foi acordado numa conversa, ou em todas as situações evitar a forma escrita na comunicação com o franchisado, aqui está um sinal de alerta para que se prepare para o pior. Mas lembre-se: em Portugal a palavra não vale nada em tribunal. Por isso, tantos processos se arrastam sem nunca condenar ninguém. Faça por ter tudo por escrito.

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